A Constituição Federal de 1988 prevê expressamente que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” (artigo 5º, inciso X). Da mesma forma, o Código Civil brasileiro prevê que “a vida privada da pessoa natural é inviolável” (artigo 21).
Esses são apenas dois exemplos da importância conferida à privacidade na legislação nacional, sendo que ainda se pode citar o Código de Defesa do Consumidor, o Marco Civil da Internet, o Cadastro Positivo, etc. como exemplos de legislação que tratam, ainda que indiretamente, sobre o assunto.
Apesar desses exemplos, faltava ainda uma lei de âmbito geral que tratasse do tema de forma ampla, visando atender suas várias nuances, em vez de apenas legislações setoriais.
Esse problema foi inicialmente resolvido com a Lei 13.709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), objetivando “proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”.
A Medida Provisória 869/2018, posteriormente convertida na Lei 13.853/2019, estabeleceu que a Lei entraria em vigor 24 (vinte e quatro) meses após a sua publicação, culminando em 16 de agosto de 2020, com exceção dos dispositivos referentes a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Esse prazo se justificava em razão da complexidade da legislação, de modo que as organizações impactadas pudessem se preparar e se adequar ao novo paradigma da proteção de dados.
Desde o início de 2020 muito já se falava na prorrogação do prazo de início de vigência da LGPD, tendo em vista o conhecido cenário de crise econômica nacional e a pandemia do coronavírus que agravou a situação.
Nesse contexto, o Projeto de Lei 1.179 (PL), de autoria do Senador Antonio Anastasia, modificava o prazo de vigência da LGPD para 36 (trinta e seis) meses, “de modo a não onerar as empresas em face das enormes dificuldades técnicas econômicas advindas da pandemia”, conforme a justificativa do PL (disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=8081773&ts=1591957343898&disposition=inline).
Apresentado o PL, dava-se como certa a prorrogação da LGPD para 2021.
Porém, durante a tramitação do PL na Câmara dos Deputados, duas mudanças ocorreram: a) prazo de início de vigência da LGPD para 01º de agosto de 2021 para os artigos referentes às sanções administrativas; b) prazo de início de vigência da LGPD para 01º de janeiro de 2021 para os demais artigos (com exceção dos artigos referentes a ANPD).
Agora pronto! A LGPD estaria finalmente prorrogada. Não!
Pelas regras legislativas o PL necessitaria voltar ao Senado Federal e lá, mais uma vez, uma mudança se deu.
Sob a justificativa de que “precisamos da coleta e do uso de dados com base em parâmetros legais, que forneçam segurança jurídica para o Estado e para as empresas”, aprovou-se o Requerimento 396/2020, de autoria do Senador Weverton, pelo qual se manteve apenas a prorrogação da vigência dos artigos referentes às sanções (01º de agosto de 2021), mas retomou-se o prazo original de 24 (vinte e quatro) meses da Lei 13.709/2020 (disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8113056&ts=1590496609120&disposition=inline), disposição sancionada no último dia 10 de junho e publicado hoje (12/06) no Diário Oficial da União (disponível em http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.010-de-10-de-junho-de-2020-261279456).
Agora acabou! Finalmente a LGPD está com suas balizas ajustadas. Ledo engano…
Como a nossa atividade legislativa é bastante peculiar, temos ainda a tramitação da Medida Provisória 959 (MP), de 29 de abril de 2020, pela qual o Poder Executivo propõe uma prorrogação geral dos artigos da LGPD (exceto em relação a ANPD) para 03 de maio de 2021. A justificativa da MP se dá pela “possível incapacidade de parcela da sociedade em razão dos impactos econômicos e sociais da crise provocada pela pandemia do Coronavírus” de cumprir os termos da lei (disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-959-20.pdf e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv959.htm).
Diante de tantas idas e vindas, afinal o que prevalece? Essa é uma pergunta difícil de responder. As tensões entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo podem alterar os cenários a qualquer momento, mas, na data de hoje 12/06/2020, o quadro é esse:
a) Autoridade Nacional de Proteção de Dados (artigos 55-A, 55-B, 55-C, 55-D, 55-E, 55-F, 55-G, 55-H, 55-I, 55-J, 55-K, 55-L, 58-A e 58-B), vigência em 28/12/2018 (apesar de até hoje a ANPD não ter sido efetivada, mas isso é outra história), justificativa a Lei 13.709/2018;
b) Sanções administrativas (artigos 52, 53 e 54), prorrogadas para 01/08/2021, justificativa a Lei 14.010/2020;
c) Demais artigos prorrogados para 03 de maio de 2021, justificativa a Medida Provisória 959 (prazo fatal de apreciação até 27 de agosto de 2020).
Mas e quais as consequências do trâmite da Medida Provisória? Nesse caso são 02 hipóteses mais claras:
SE A MEDIDA PROVISÓRIA FOR REJEITADA OU CADUCAR
a) Quanto a ANPD nada muda;
b) Sanções administrativas (artigos 52, 53 e 54), prorrogadas para 01/08/2021, justificativa a Lei 14.010/2020;
c) Demais artigos entrarão em vigor em 16 de agosto de 2020, justificativa a Lei 13.709/2018.
SE A MEDIDA PROVISÓRIA FOR INTEGRALMENTE CONVERTIDA EM LEI
a) Quanto a ANPD nada muda;
b) Todos os demais artigos ficam prorrogados para 03 de maio de 2021, justificativa a conversão da MP 959 em Lei.
Uma terceira hipótese seria o Congresso Nacional modificar os termos da Medida Provisória, mas prever com precisão o que aconteceria nesse caso é, para dizer o mínimo, praticamente impossível.
Como se vê, a vigência das disposições da Lei Geral de Proteção de Dados, Lei 13.709/2020, ainda é incerta e apresenta muitas inseguranças às organizações que precisam a ela se adequar e também as pessoas físicas, titulares dos dados, para exercer os direitos previstos na lei. Até 27 de agosto muita coisa pode acontecer e novos capítulos virão.
A única certeza é que o assunto privacidade e proteção de dados nunca foi tão discutido no Brasil e esse é um caminho sem volta. Quanto antes se iniciar o processo de adequação, melhor será e mais preparadas as organizações estarão para enfrentar esse novo paradigma.